Contemplação

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domingo, 9 de janeiro de 2011

O Gato Sou Eu

Gostaria de saber o que há na água de minas.Pois é a unica explicação plauzível que encontro para o estado ser celeiro de tantos artistas de elevada qualidade.Os outros estados que me perdoem,mas uma terra que nos brindou com a musicalidade refinada do Clube da Esquina tem que merecer certas honrarias.
Mas o tema desse post não é nada relacionado a música.Pelo menos não diretamente.Trago para vocês uma crônica de um escritor mineiro que amo,chamado Fernando Sabino.Sabe lá Deus porque,mas ele não tem a "fama" que merecia.
Sabino é dono de um fino senso de humor e de uma leveza nas palavas sem igual.Criou textos maravilhosos de uma simplicidade tocante.E é daqueles autores que a gente lê e nem ve passar o tempo.
Abaixo vai a íntegra de uma das suas crônicas,que pode ser encontrada no livro que leva o mesmo nome.


"O Gato Sou Eu-Fernando Sabino.

-Aí então,eu sonhei que tinha acordado.Mas continuei dormindo.
-Continuou dormindo.
-Continuei dormindo e sonhando.Sonhei que estava acordado na cama,e ao lado,sentado na cadeira,tinha um gato me olhando.
-Que espécie de gato?
-Não sei.Um gato.Não entendo de gatos.Acho que era um gato preto.Só sei que me olhava com aqueles olhos parados de gato.
-A que você associa a imagem?
-Não era uma imagem:era um gato.
-Estou dizendo a imagem do seu sonho:essa criação onírica simboliza uma profunda vivência interior.É uma projeção do seu subconsciente.A que você associa ela?
-Associo a um gato.
-Eu sei: aparentemente se trata de um gato.Mas na realidade o gato,no caso,é a representação de alguém.Alguém que lhe inspira um temor reverencial.Alguém que a seu ver está buscando desvendar o seu mais íntimo segredo.Quem pode ser esse alguém,me diga?Você deitado aí nesse divã como na cama em seu sonho,eu aqui nessa poltrona,como o gato na cadeira...Evidentemente esse gato sou eu.
-Essa não,doutor.A ser alguém,neste caso o gato sou eu.
-Você está enganado.E o mais curioso é que,ao mesmo tempo,está certo,certíssimo,no sentido em que tudo o que se sonha não passa uma projeção do eu.
-Uma projeção do senhor?
-Não,uma projeção do eu.O eu,no caso,é você.
-Eu sou o senhor?Qual é,doutor?Está querendo me confundir a cabeça ainda mais?Eu sou eu,o senhor é o senhor,e estamos conversados.
-Eu sei: eu sou eu,você é você.Nem eu iria por em dúvida uma coisa dessas,mais do que evidente.Não é isso que estou dizendo.Quando falo no eu,não estou falando em mim,por favor,entenda.
-Em quem o senhor está falando?
-Estou falando na individualidade do ser,que se projeta em símbolos oníricos,dos quais o gato do seu sonho é um perfeito exemplo.E o papel que você atribui ao gato,de fiscalizá-lo o tempo todo,sem tirar os olhos de você,é o mesmo que atribui a mim.Por isso é que eu digo que o gato sou eu.
-Absolutamente.O senhor vai me desculpar,doutor,mas o gato sou eu,e disso não abro mão.
-Vamos analisar essa sua resistência em admitir que eu seja o gato.
-Então vamos começar pela sua insistência em querer ser o gato.Afinal de contas,de quem é o sonho: meu ou seu?
-Seu.Quanto a isto,não há a menor dúvida.
-Pois então?Sendo assim,não há também a menor dúvida de que o gato sou eu,não é mesmo?
-Aí que você se engana.O gato é você,na sua opinião.E sua opinião é suspeita,porque formulada pelo consciente.Ao passo que,no subconsciente,o gato é uma representação do que significo para você.Portanto,insisto em dizer: o gato sou eu.
-E eu insisto em dizer: não é.
-Sou.
-Não é.O senhor por favor saia do meu gato,que senão eu não volto mais aqui.
-Observe como incoscientemente você está rejeitando minha interferência na sua vida através de uma chantagem...
-Que é que há,doutor?Está me chamando de chantagista?
-É um modo de dizer.Não vai nisso nenhuma ofensa.Quero me referir à sua recusa de que eu participe de sua vida,mesmo num sonho,na forma de um gato.
-Pois se o gato sou eu!Daqui a pouco o senhor vai querer cobrar consulta até dentro do meu sonho.
-Olhe aí,não estou dizendo?Olhe a sua reação: isso é a sua maneira de me agredir.Não posso cobrar consulta dentro do seu sonho enquanto eu assumir nele a forma de um gato.
-Já disse que o gato sou eu!
-Sou eu!
-Ponha-se para fora do meu gato!
-Ponha-se para fora daqui!
-Sou eu!
-Eu!
-Eu!Eu!
-Eu!Eu!Eu!"

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